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domingo, 3 de agosto de 2014

[A MÃO DO ESCRITOR] Um conto e uma poesia #04

Neste domingo, teremos uma homenagem a esta semana tão especial para a escritora chilena, Isabel Allende, com um conto selecionado, e uma poesia do escritor Kurt Heynicke, em respeito ao centenário da Primeira Guerra Mundial e retratando a dor e o sofrimento que tal época foram capazes de proporcionar.


Conheçam um pouco das obras desses autores e espero que se sintam sensibilizados com a poesia e com o conto, clicando em leia mais, logo abaixo.
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CONTO

DUAS PALAVRAS

Tinha por nome Belisa Crepusculário não por batismo ou escolha de sua mãe, mas porque ela própria o procurou até encontrar e com ele se adornou. De família tão miserável que nem sequer possuía nomes para dar aos filhos, até 12 anos não teve outra ocupação senão a de sobreviver à fome e à fadiga de séculos.
Disposta a enganar a morte, decidiu andar em direção ao mar. Chegando a uma aldeia, o vento jogou a seus pés uma folha de jornal, pegou aquele papel amarelado e quebradiço que viria a transformar sua existência. Nesse dia, soube que as palavras andam soltas, sem dono, e q qualquer um com um pouco de manha pode pegá-las para vender.
Vender palavras tornou-se seu ofício, percorrendo o país, instalando-se em feiras onde montava sua tenda para atender a clientela. Não precisava anunciar sua mercadoria, logo que se sabia de sua presença, formavam-se filas à sua espera.
- 0,05 versos de memória
- 0,07 melhorava a qualidade dos sonhos
- 0,09 cartas a namorados
- 0,12 inventava insultos para inimigos irreconciliáveis
Também vendia contos, que eram longas histórias verdadeiras, era portadora de notícias entre os vilarejos, juntando sempre à sua volta uma multidão ansiosa por ouvi-la. A quem lhe comprasse 0,50 dava de presente uma palavra secreta para afugentar a melancolia. Cada um recebia a sua, com a certeza de que será única.
Um dia, enquanto vendia argumentos de justiça a um velho que solicitava sua pensão há 17 anos, o barulho da feira é interrompido pela nuvem de pó causada pelos cavalos dos homens do Coronel, comandados por Mulato, conhecido pela rapidez de sua faca e pela lealdade a seu chefe.
 Sempre ocupados na guerra civil, os homens do Coronel estavam associados ao malefício e à calamidade, deixavam atrás de si, por onde passavam, destroços de um furacão. Sua chegada à feira provocou uma debandada geral, só permanecendo Belisa Crepusculário que não os conhecia.
- Procuro-a. – Gritou Mulato, os homens a amarraram e a levaram consigo em direção às colinas. No acampamento, foi informada de que o Coronel necessitava de seus serviços. Iluminado pela luz de uma tocha, ela viu a pele escura e os olhos de puma, percebendo que estava diante do homem mais solitário do mundo.
Cansado de ver o terror estampado nos olhos dos outros quando o viam, queria entrar nas aldeias sob os arcos de triunfo, queria ser eleito presidente e precisava das palavras para seu discurso. Belisa nunca havia recebido encomenda semelhante, mas não ousou recusar-se, o calor emanado da pele daquele homem, o desejo de poderoso de tocá-lo, percorrê-lo com as mãos, apertá-lo entre os braços, a fez aceitar o trabalho.
Passou toda a noite e boa parte do dia seguinte, amarrada pelas canelas a uma árvore, ora descartando, ora escolhendo as palavras apropriadas para um discurso presidencial. Ao terminar foi levada à presença do Coronel, entregou-lhe o papel e aguardou enquanto ele a olhava, segurando-o com a ponta dos dedos:
- Que merda diz isso aqui? – Perguntou.
- Não sabe ler?
- O que sei fazer é guerra!
Ela leu o discurso em voz alta por três vezes e, enquanto lia, pode ver a emoção no rosto dos homens da tropa e o entusiasmo nos olhos amarelos do candidato, que tinha como certa sua eleição com o discurso.
- Quanto lhe devo pelo trabalho, mulher?
- Um peso, Coronel.
- Não é caro. – disse ele enquanto pegava o dinheiro para pagá-la.
- Além disso, tem direito a uma prenda. Correspondem-lhe duas palavras secretas.
- Como é isso?
Ela explicou que, por cada 0,50 que o cliente pagava, oferecia-lhe uma palavra de uso exclusivo. O homem deu de ombros e resolveu aceitar, não querendo ser indelicado com quem o servira tão bem.
Ela aproximou-se, sem pressa, da cadeira de couro em que ele estava sentado e inclinou-se. Então ele sentiu o cheiro que vinha daquela mulher, o calor de seus quadris, o roçar terrível de seus cabelos, o hálito de hortelã pimenta sussurrando-lhe ao ouvido as duas palavras.
Ao acompanhá-la até a beira do caminho, o Mulato olhou-a com olhos suplicantes de cão perdido, mas quando estendeu a mão para tocá-la, ela o rechaçou com um jorro de palavras inventadas, que ele pensou se tratar de alguma maldição irrevogável.
Nos quatro meses seguintes, o Coronel percorreu o país pronunciando seu discurso, encantando cidades e aldeias esquecidas, fascinando seus eleitores com a clareza de suas propostas e com a lucidez poética de seus argumentos. Deixava atrás de si um rasto de esperança que permanecia muitos dias no ar, aquele homem forjado por guerras e cheio de cicatrizes tornara-se um fenômeno nunca visto.
- Estamos indo bem, Coronel. – disse o Mulato ao fim de doze semanas de êxito.
Mas o candidato não ouviu, repetia as palavras secretas como vinha fazendo cada vez com mais frequência para abrandar a nostalgia, adormecido, surpreendia-se saboreando-as nos momentos distraídos. Sempre que as repetia, evocava a presença de Belisa Crepusculário e as sensações que ela lhe causara.
Começou a andar como um sonâmbulo e seus homens compreenderam que sua vida se tinha acabado antes de alcançar a cadeira dos presidentes. Um dia confessou a Mulato o motivo de sua perturbação: as duas palavras que trazia cravadas em seu ventre.
Cansado de ver o chefe definhar, o Mulato partiu em busca de Belisa Crepusculário e encontrou-a em uma aldeia à sua espera. Guardou o tinteiro, dobrou o pano da barraca, pôs o xale nos ombros e, em silêncio, montou na garupa do cavalo.
O desejo que Mulato sentira por ela havia se transformado em raiva e temor. Aquela mulher lograra com um encantamento o que anos de batalhas não haviam conseguido. Levou a prisioneira ao candidato, diante de toda a tropa.- Coronel, trouxe essa bruxa para que lhe devolva suas palavras e para que ela lhe devolva a hombridade – disse, apontando o cano da espingarda para a nuca da mulher.
O Coronel e Belisa Crepusculário olharam-se longamente, medindo-se à distância. Os homens compreenderam, então, que seu chefe já não se podia desfazer do feitiço das palavras endemoninhadas, porque todos puderam ver os olhos carnívoros do puma tornarem-se mansos quando ela avançou e lhe pegou a mão.


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POESIA

DESPEDIDA (1917)

O silencio fala.
Cansados entram os olhares florestas adentro pela noite
e sobre a nossa janela 
morre a luz.
Mansamente
todas as sombras deslizam para os longes.
O teu cabelo murcha na minha mão.
Agora
erra o meu tactear em busca do bastão
e da luz do último vapor do rio.



4 comentários:

  1. Eu sou apaixonada por essa parte do seu blog. A mão do escritor sempre traz autores incríveis e esse não foi diferente.
    Amei o conto, amei a poesia, amei tudo!^^
    Beijo

    http://canastraliteraria.blogspot.com.br/

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    Respostas
    1. Obrigado! E é exatamente isso que quero trazer :) tudo para que vocês conheçam um pouco mais do estilo dos autores ;)

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  2. Cheguei adorando!!!
    Que tag linda! *-*
    Bom demais saber sobre os escritores!

    Lindo blog André!

    Pensamentos valem mais que ouro

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